Desde sempre vivi em casas/moradias/habitações sem vizinhos por baixo e por cima, nunca em apartamentos.
Primeiro numa casa “improvisada”, adjacente à casa dos meus avós – um quarto, um quartinho, uma sala, uma cozinha e uma casa de banho no exterior.
Depois veio aquela que é hoje a casa dos meus pais. Rés do chão, 1º andar e sótão.
Apartamentos sempre me fizeram confusão. Passar na rua e ver para dentro de casa das outras pessoas. Perceber se estava gente em casa, se viam televisão ou se tinham visitas.
Nunca me tinha apercebido que o mesmo acontecia em relação à casa dos meus pais. Paredes meias com a casa dos meus avós, rodeados pelas casas dos meus tios e partilhando um quintal comum. Aqui não se partilhavam apenas as hortaliças. Aqui também partilhávamos os ralhetes, os castigos, e as birras. Sabíamos, no mesmo momento, se um de nós, os primos, tinha sido apanhado em alguma malandrice. Sabíamos, pelo volume, se tinha “havido festa”.
Aqui sabíamos quem estava em casa, quem tinha deixado as janelas abertas ou a porta encostada. Aqui quase nem era preciso bater antes de entrar pois vivíamos porta com porta, paredes meias com outras vidas que não eram as nossas.
Aqui, num meio a pender para o selvagem, sempre fomos muito civilizados. Respeitávamos os silêncios, partilhávamos da hora das refeições e da hora dos descansos. Sabíamos que era tempo de recolher pelo simples correr de um estore.
Hoje, vivendo num apartamento, não partilho da proximidade com os outros como outrora. Não vivemos paredes meias com outras vidas que não a nossa. E também não partilhamos os momentos de descanso.
Sim, acredito que vivo por baixo de selvagens.
Difícil perceber estas rotinas. Difícil perceber porque se corre a todo o instante dentro de casa. Difícil perceber porque se arrastam as cadeiras à hora do jantar, porque se arrastam os sofás ou cadeirões depois do jantar, porque se sapateia depois da hora de dormir e quando ainda mal nasceu o sol.
Faz-me confusão esta falta de respeito pelo tempo dos outros, esta falta de consideração pelo descanso alheio. Faz-me confusão que não se saiba zelar pelo bem comum quando partilhamos as mesmas paredes, as mesmas escadas, a mesma estrutura.
Arrastam-se cadeiras no chão da cozinha, empurra-se mobiliário no chão de madeira da sala, deixam-se cair objetos metálicos no chão dos quartos, bate-se com as portas dos armários da casa de banho… usa-se a Bimby às três e quatro da manhã para picar ou moer alguma coisa.
Percebo que tenhamos de criar estratégias para dar resposta às necessidades do dia a dia. Percebo que tenhamos de fazer coisas a horas impensáveis pois, entre o dia passado fora e as horas que sobram até ao deitar nem sempre deixa que o tempo estique, se desdobre e renda para tudo o que precisa de ser feito.
Faz-me confusão que, a determinadas horas, se coloque em pratica o Livro da Selva e que vivamos todos em torno dos nossos próprios umbigos.
Venha de lá o Mogli que hoje é domingo.