|Padrinhos que são pais|

Às vezes, lês um livro e parece que reconheces a história, as personagens, os locais, os gestos…

Às vezes, lês um livro e parece a tua vida, ou parte dela… sentes que esteve lá alguém a observar e consegue escrever exatamente como tu te recordas.

Com este livro foi mais ou menos assim.

Em “Um lugar ao sol”, Annie Ernaux fala da vida dos pais. Donos de um pequeno comércio, os pais tentam contrariar a tradição de família de trabalharem em fábrica ou na lavoura para terem algo que é seu, a sua casa, o seu ganha-pão.

Trabalham por conta própria, são empreendedores, são esforçados e, mesmo assim, passam necessidades.

Partilham o mesmo projeto de trabalho e de vida. Partilham o dia a dia, partilham as dores de um negócio que tentam, a todo o custo, fazer vingar numa França que enfrenta os efeitos de uma Grande Guerra.

Ajudam os outros com o pouco que têm pois, a seu ver, têm mais do que os outros que nada têm e têm obrigação de o fazer.

Tentam erguer-se, a custo, no pós segunda guerra mundial. Mudam de cidade e tentam a mesma receita.

Têm uma relação peculiar. Ela, de pelo na venta, explode facilmente mas não perde uma noite de sono com o que não merece. Ele, mais paciente, lida com os estilhaços das explosões dela enquanto dedica a sua energia a outros pequenos projetos, à sua pequena horta.

Este primeiro conto parece um decalque da vida dos meus padrinhos – os meus segundos pais.

Não viveram a segunda grande guerra, nem tampouco viveram em França mas a relação entre os dois, as interações, a forma de cuidar um do outro são tão semelhantes que quase parece a mesma história em cenários diferentes. Desloquem-se as personagens e esta história poderia ser sobre os meus.

Não conheço muitos casais com este tipo de relação, com este tipo de interação, com esta forma de cuidar.

Nunca questionei a minha madrinha sobre isto… nunca questionei sobre a sua relação com o meu padrinho. Temo já não ter muito o que questionar pois, tal como no segundo conto deste livro, em “Uma Mulher”, Annie Ernaux fala da doença da mãe e da forma como chegou o seu fim… este é o caminho que faz agora a minha madrinha… este caminho de mãos dadas com Alzeihmer.

Hoje ela voltou ao hospital e não sabemos muito bem qual será o resultado.

A minha madrinha é a minha segunda mãe e tem o melhor coração que alguém poderia ter. Ela pode não se recordar de muita coisa, pode confundir as ideias, os tempos e os modos. mas quem com ela conviveu, sabe que tem um coração ainda melhor que o da minha mãe. Capaz de dar a roupa que traz vestida a quem nada tem, tem hoje muito pouco para partilhar.

Vive paredes meias com a falta de sorte – ou de saúde – numa casa na qual 3 das 4 pessoas necessitam de canadianas para se movimentarem.

Mesmo assim, mesmo com todas estas adversidades, continua a deixar que os homens joguem à sueca no tasco que se encontra fechado, que se sirvam das barricas de vinho e deixem os copos na banca que alguém chegará para lavar.

Nos momentos mais tranquilos consegue rir e partilhar algumas memórias. Consegue chorar e relevar a sua falta de sorte para aquilo que ela chama dos “desígnios” de Deus. Quando está mais confusa, a cabeça viaja para quando ainda estava no tasco e tinha pessoas à espera. Fazias as contas de cabeça e tomava notas num pequeno bloco de papel. Sabia por alto o que tinha vindo para as mesas e confiava na palavra de quem estava sentado.

Se a tentavam enganar, ela logo repunha a verdade e chamava a pessoa à razão. Era capaz de dar outra oportunidade se a pessoa não mostrasse malícia ou más intenções.

Tem 3 filhas mas trata os afilhados, os filhos dos afilhados, os vizinhos e os filhos dos vizinhos como seus.

Há sempre lugar à sua mesa; há sempre mais um prato e mais um copo.

Há sempre mais para partilhar e hoje estamos a torcer para que continue a haver mais e mais para partilhar.

|Padrinhos que são pais|

|quando o silêncio é tão estranho quanto necessário|

Estamos as duas sozinhas em casa.

Eu em modo “home office”; ela em modo “varicela style”.

Duas noites a dormir mal graças a comichões e cremes para aliviar e banhos mornos.

Habitualmente, quando estamos as duas neste registo – ainda resquícios de 2 confinamentos e muito tempo em casa – a tv está ligada com o som estridente dos desenhos animados, o computador está ligado com vídeos de youtube, as folhas de papel estão espalhadas pela mesa, junto de canetas, lápis, pinceis e aguarelas.

Ouço-a a cantarolar enquanto desenha. A voz mistura-se com o som da TV e do computador. Faço um esforço para me concentrar e tentar abstrair-me dos sons agudos de tudo que é apropriado para uma criança de 6 anos.

Percebo, pelas sombras, que há um movimento diferente… é ela, que aproveita uma das músicas dos desenhos animados para exercitar alguns passos de ballet… fica em casa por estes dias mas vai mantendo algumas rotinas… e é estranho como uma filha minha consegue ser graciosa enquanto dança.

Desligo uma vez mais e volto ao ritmo das mensagens do whatsapp, do teams, dos emails…

Tenho os phones nos ouvidos mas não está a passar qualquer música.

Ao fim de algum tempo nisto – de teclas, notificações, janelas abertas – percebo que a sala está em silêncio. Consigo ouvir o som do elevador, para cima e para baixo, com as portas a abrir e a fechar e alguém que carrega algo pesado para o seu interior. Deixa cair e sobe uns andares. A porta de acesso às escadas bate com algum estrondo. É hora de regressar a casa.

Aqui na sala, a TV está desligada e mantém-se apenas o computador ligado num canto do sofá. Ela está de phones a ver a Mulan… não, ela está de phones; está a dar a Mulan mas ela está a dormir.

Ficamos as duas em silêncio e ouço apenas a respiração mais profunda dela, que se mistura com o barulho das teclas do meu pc.

É fim de tarde e são horas de voltar a casa.

É fim de tarde e há ainda alguma luz lá fora.

É fim de tarde e os dias começam a ficar maiores.

Finalmente.

|quando o silêncio é tão estranho quanto necessário|

|A poesia faz-nos melhores pessoas|

“A poesia, tal como eu a concebo, faz-nos, acredito, melhores pessoas, porque nos move (podendo fazer-nos agir) – e nos comove.”

Li isto numa das muitas homenagens que vi pelas redes sociais fora a propósito da morte de Ana Luísa Amaral. E, de facto, as melhores pessoas que me rodeiam, rodeiam-se de poesia. E é graças a elas e aos seus muitos livros de poesia que eu própria me torno melhor pessoa.

Recordo uma conversa com Ana Luísa Amaral, a propósito da escolha das palavras, da “dissecação” de cada palavra. Recordo como analisava não só o significado, como o significante, a fonética e toda a intenção presente no contexto em que cada palavra era aplicada. Recordo-a junto com alguns atores que aprendi a admirar e a conhecer, junto da escadaria da Livraria, dizendo “Próspero Morreu”. Recordo-a ainda, numa manhã de domingo em que juntou algumas das suas amigas para dizer “Gaspar, um dedo diferente”, pegar a minha filha de quase dois anos no colo e dizer para a sua Rita “Vês?! Queria uma assim!” Recordo a forma como abraçou a minha filha e como eu desejei que a sua clareza de espírito, a sua força, a sua garra e a sua paixão pelas letras passasse naquele abraço.

A Mafalda ainda não sabe mas esteve no colo de uma das mulheres mais brilhantes da literatura portuguesa, de uma figura maior da nossa língua. Guardo “E Todavia” no quarto da Mafalda, com a letra da Ana Luísa e um xi bem apertadinho. Guardo a memória daquela manhã e daquele abraço entre aquelas páginas. Hoje folheio e sinto o cheiro ténue do cigarro misturado com um cheiro a banho e a casa arejada. Folheio e recordo a paixão daquela mulher pelas palavras, só comparável ao seu amor pela sua filha.

Uma semana após a sua morte, tenho ainda dificuldade em acreditar que ficou por aqui. resta-me saber que há ainda tanta coisa que eu não li. resta-me ainda ler tudo da sua Emily. restam-me ainda muitas páginas que lerei lentamente, saboreando e fazendo render cada palavra como se fosse a Ana Luísa a dizê-las.

|A poesia faz-nos melhores pessoas|

|Sala de Espera|

Há duas horas à espera por uma consulta.

SALA DE ESPERA, é o que diz na pequena placa retroiluminada no pilar à entrada.

Com as novas tecnologias na admissão de consultas, tenho dúvidas em como tenha feito a coisa bem.

Verifico na app e parece estar correto.

  • Admissão da consulta: check
  • Consulta realizada: uncheck
  • Fatura: uncheck

Mas no painel eletrónico o meu número parece nunca mais aparecer.

Trouxe um livro pequeno para não pesar muito na mala. mas já o li,

Tenho pouca bateria no telemóvel; não posso deixar acabar pois tenho de controlar as rotinas lá em casa.

Encontrei uma caneta e meia dúzia de post-its perdidos na carteira lembrei-me de descrever. só porque sim. para mim. para não pensar no tempo que tenho de passar na sala de espera.

Tenho a cabeça num turbilhão. entre o que ficou por fazer por ter de sair mais cedo e o que ainda é necessário fazer, arranjo ainda espaço para as rotinas domésticas e para as minhas angústias. o tempo livre tem destas coisas.

Continuo a tentar lidar com o que me tira do sério. tento organizar os pensamentos para perceber que caminho escolher, em que é que me devo focar, com o que é que me devo desgastar.

Depois de ler sobre Criatividade, sobre ‘inteligência inconsciente’, prefiro não me preocupar com a escolha das palavras e apenas escrever. era o que dizia no livro “the key thing is to start, even ifnit feels as though you’re forcing yourself through an emotional roadblock.”

Pode ser que alivie a dor de cabeça…

Lembrei-me que deixei o portátil no carro. e se me assaltam o carro? deixei no parque mas tem um letreiro que diz “não nos responsabilizamos por danos na viatura nem furtos de bens pessoais”. será que fechei o carro? e será que puxei o travão de mão? no outro dia, o Zé Carlos dizia-me que eu tinha deixado o carro destravado na garagem… não me recordo. é o que dá confiar nesta espécie de “automatismo”, deste subconsciente quase fisiológico que nos permite realizar atividades diárias, ordinárias, sem pensar muito nisso.

Passaram mais 10 minutos e o painel não apitou nem mais uma vez. os números permanecem. percebo que está a ficar tarde pois o ritmo das consultas é cada vez mais lento. pela janela percebo ainda que o dia está a terminar. ou será só das nuvens? apesar do calorão de ontem, hoje estão menos 7 ou 8 graus e não há uma nesga de azul no céu. parece orvalho no vidro da janela. mas é final de dia e devem ser apenas as janelas por limpar.

eh pah! esqueci-me de ligar à Carla para ver se podia vir amanhã dar um jeito à casa. caramba! não me apetece nada passar mais uma manhã a limpar a casa… mas, a esta hora, quase hora do jantar, já não faz muito sentido ligar. a esta hora já a Carla está a pôr o jantar na mesa e a gritar para o miúdo desligar a porcaria da Playstation para vir jantar. Rais’parta a escola que nunca mais começa para que o raio do miúdo não fique a tarde toda trancado no quarto!

Começo a sentir fome e lembro-me que nem lanchei. tenho um iogurte no carro. não é bem um “iogurte”. é mais um daqueles “snacks” da moda: iogurte proteico com mirtilos, mistura de sementes (para salada mas who cares?), nozes e canela. parece mais uma sobremesa bem perto da hora de jantar. se fosse a Mafalda a pedir, estava fora de hipótese comer algo assim a esta hora… o jantar já deve estar quase na mesa.

Continuo na sala de espera e tento recordar o outro livro que ando a ler e que deixei em casa por ser bastante pesado – os livros têm destas coisas, o peso do papel.

Asneira!

Por esta hora já teria acabado as 150 páginas que faltam para o final e que parecem não ter fim.

A chegar ao fim está este mini-bloco de post-its. pouso a caneta e continuo à espera.


Passaram-se mais de 2h30 desde que fiz a admissão.

Estou sozinha na sala de espera e vejo aproximar-se uma auxiliar. “fiz asneira”, é o que me ocorre. e estava certa. as tecnologias falharam e a app não comunicou com o sistema interno. a médica ainda esperou por mim mas acabou por desistir e foi embora. sinto-me verdadeiramente naba pois dei por adquirido que:

  • as apps não falham;
  • estava a cumprir a indicação da receção central;
  • é “normal” todo este tempo de espera

Reagendamos a ver se da próxima corre melhor.

|Sala de Espera|

[ninguém escreve ao Coronel]

O mesmo é dizer que já ninguém escreve.

Ninguém escreve cartas, ninguém escreve bilhetes e pequenas notas.

Ninguém escreve.

Hoje digitam-se umas mensagens no whatsapp, escrevem-se emails mais ou menos rápidos e formais, escrevem-se alguns emails quase monossilábicos (com um “obrigada” ou um “está confirmado”).

contra mim falo… já não escrevo. estou completamente destreinada (?!). demoro a construir uma ideia, uma linha de raciocínio… escrevo entre tarefas, entre chamadas e video-chamadas (a grande praga dos dias de hoje). Leio mensagens e fico com preguiça para responder (sorry!).

É isso… preguiça… ou pouca vontade de falar sobre o que me incomoda, sobre o que me tira o sono, sobre o que acho que está errado e ainda não consegui mudar.

Ainda.

Para lá caminhamos.

[vejo isto como um exercício de escrita, como algo que rascunho no meu bloco, e como uma forma de usar as teclas para algo que não seja trabalho]

[ninguém escreve ao Coronel]

|1º de abril|

mandava a tradição que fosse o meu pai a acordar-me na manhã deste dia.

e, estivesse frio ou calor, tivessem estado 30º no dia imediatamente anterior, o despertar era sempre igual:

“está a nevar lá fora!”

e eu, ainda atordoada com o sono, caía da cama e corria para a janela para tentar ver logo cedo a magia da neve.

só mais tarde – anos mais tarde – comecei a perceber, ainda enquanto me dirigia para a janela, que era o 1º de abril, o dia das mentiras.

hoje acordei e lembrei-me desse despertar. e era bem possível que estivesse a nevar lá fora, tal era o frio que fazia ontem… mas acordei com solinho bom, com a casa em silêncio e com umas saudades incríveis do meu pai!

dos meus pais! da casa deles, do cheiro das cortinas lavadas, do cheiro do café com leite e do pão torrado – com bordinhas queimadas (quem nunca?!) – com manteiga…

estamos nisto há 21 dias… nesta espécie de quarentena, de distanciamento social, para cuidarmos de nós e dos nossos. estamos nisto há tantos dias que nem sabemos quando vai terminar. estamos nisto há tanto tempo que qualquer piada/mentira tem muito pouco efeito.

vamos continuar nisto por hoje e entrar em modo trabalho remoto. já são mais que horas, diria o meu pai.

|1º de abril|

|Agustina vive nas mulheres da minha vida|

Ontem, na pausa para o almoço, soube da morte da Agustina.

Espreitava por cima do computador de uma colega quando dei de caras com as parangonas da notícia da morte da Agustina.

“Morreu Agustina Bessa-Luís”, podia ler-se em grande, com letras amarelas sob uma foto de Agustina a preto e branco.

Automaticamente, lembrei-me da Joana e da Minês. Lembrei-me também da Ana e da Inês e das conversas à mesa em casa da Minês. Lembrei-me das conversas sobre as mulheres que marcam as letras em Portugal e no mundo. Lembrei-me das vezes em que falamos e falamos e falamos, sem nos preocuparmos se algum dos miúdos estava a fazer asneiras ou puxar a nossa roupa para pedir atenção. E lembrei-me das conversas sobre a reedição da obra de Agustina. Dos dois volumes gigantescos com preços proibitivos mas que figuram agora nas estantes da Joana e da Minês. Nesta altura, as contas da casa já eram uma preocupação real pois já não tínhamos os país a assegurar as coisas básicas.

Com a notícia da morte da Agustina fiquei a pensar na Minês e na paixão que ela tem pelo Porto e pelo Porto que tinha a Agustina como anfitriã. Ao ler as palavras de Lobo Antunes sobre a forma como Agustina o recebeu na sua vinda à Livraria Lello, imaginei a Minês neste papel. Claramente, a Minês virá a ser anfitriã desta nossa cidade, desta sua cidade e falará em nome das letras e das casas de letras daqui do Porto.

Mas fiquei a pensar muito na Joana. Fiquei a pensar que, se comecei a ler a obra de Agustina, foi por tantas vezes ter visto o olhar da Joana iluminar-se de cada vez que falava sobre ela.

Ao ler “A Sibila”, lia também a força e a determinação da Joana. E da Minês, e da Inês e da Ana. Mas lia e ouvia muito a Joana. Conseguia imaginá-la no jardim das traseiras da casa da mãe, sentada numa manta sobre a relva, à sombra daquilo que eu acho que seriam laranjeiras, com livros e jornais junto às pernas. Em casa da mãe da Joana é sempre verão. Pelo menos, para mim. Em casa da mãe da Joana viverá sempre a Agustina. Aliás, com a Joana, Agustina viverá sempre, tal como ela o escreveu hoje.

Esta é a forma como eu vejo Agustina

|Agustina vive nas mulheres da minha vida|

|claramente, não fui feita para isto|

[aliás, ainda estou para descobrir para o que é que eu fui feita]

tratar de questões de responsabilidade social está a ser o maior dos meus pesadelos. a minha maior luta.

quero ajudar e dar resposta a todos os pedidos que me chegam. fico com pena de todos. emociono-me com todas as histórias. fico com voz trémula ao telefone e não consigo não deixar cair uma lágrima nas conversas ao vivo.

até ler alguns emails e preparar a resposta está a ser suficiente para me deixar com os olhos marejados.

quéesta merda?!

estarei “naqueles dias”?

[não sei bem que dias são estes mas esta é daquelas coisas que deve ser como a história das bruxas]

Rais parta que ninguém me preparou para isto!

e hoje tá difícil… parece que história atrai história e hoje toda a gente decidiu partilhar comigo verdadeiras histórias “de vida” (algumas mais de morte do que de vida, mas enfim).

carambas, pá!

numa tentativa de descomprimir dou de caras com alguém que soube dar a volta. ou melhor, consiguiu mostrar que não faz mal rir da desgraça. Nora McInerny é autora de um podcast incrível onde é possível ouvir falar de assuntos”pesados” de forma leve. em “Terrible, Thanks for Asking”, Nora fala um pouco sobre como a sua experiência a ajudou a ver as tragédias de outra forma e mostra-se uma “radialista” com um sentido de humor espetacular.

[assim, a talho de foice, Nora abortou quando estava grávida do segundo filho, perdeu o pai e perdeu o marido, ambos com cancro, num espaço de poucas semanas.]

tem um instagram espetacular, bem como as crónicas que escreve para a Elle.

haverá dedicatória mais bonita???

hoje foi a minha companhia a caminho de casa.

se isto poderia ser mais “deprê”? podia, mas não seria a mesma coisa.

|claramente, não fui feita para isto|

|escrever para não esquecer|

[mesmo tendo a noção que, em menos de três meses, me estarei a arrepender]

ontem pensava sobre a questão dos filhos.

ter um ou mais filhos.

amar ou não amar da mesma forma o primeiro e o segundo filho.

preferir ou não um filho em detrimento do outro.

identificar-se mais com um que com o outro.

e dei por mim a olhar para a minha filha e a pensar que ela é exatamente aquilo que eu gostaria que ela fosse enquanto bebé/criança. despachada, com uma vontade enorme de fazer tudo sozinha. desinibida mas sem gostar muito de confusões. capaz de rir das asneiras dos outros, mas, principalmente, capaz de rir dela própria. e que gargalhada sonora ela tem!

um desafio constante, um acordar lento e difícil, uma necessidade incrível do seu tempo e do seu espaço. e um doce! meiga que dói para com os seus!

tem também o lado das birras, da teimosia, da falsa autonomia. tem o caso dos amuos só porque sim. tem ainda a questão do sono e das difíceis birras de sono.

tem o lado difícil bem colado ao fácil. por muito que me digam que isto é da idade e que, com 2 anos, são todos assim, certo é que eu não tenho mais nenhum e sempre que a observo, sempre que faço o exercício de relativizar as suas ações, percebo que que estou exatamente onde queria estar, e com quem queria estar.

|escrever para não esquecer|

|dar o peixe ou ensinar a pescar|

isto pode parecer demasiado bíblico mas é sempre um dilema.

em tempos ainda debati com um amigo sobre a legitimidade dos donativos, de dar ou não dinheiro sob pena de, num ato de total desgoverno ou falta de noção, um desgraçado o gastar em “porcarias”, em coisas que só lhe fazem mal.

a conversa surgiu no seguimento de um artigo de Miguel Esteves Cardoso – “Contra os Pobres” (2014)

“É a mesma irracionalidade desempática que leva as pessoas a dar esmolas condicionadas: dão comida mas recusam-se a pagar não só heroína e vinho como – juro que já são mais de mil vezes que testemunhei – bolos e gelados.”

quatro anos depois, este tema volta à mesa (de onde nunca saiu, acho eu). pedem-me ajuda. pedem-me roupas quentes, cobertores, calçado e meias – muitas meias – e cuecas. pedem-me copos de plástico, tigelas, colheres, guardanapos, sacos de plástico. pedem-me marmelada, queijo, mortadela, pão. pedem também dinheiro, se for possível, para comprar legumes para a sopa quando a que lhes dão não chega. ou para sumos. ou para qualquer outra coisa que não lhes tenha sido dada e que faça falta para aquecer um pouco quem nada tem.

mais do que bens e dinheiro, pedem-me que esteja lá. que vá lá e veja o que se passa.

mais do que me pedirem para ir ver, mostram-me fotos e vídeos. mostram-me rostos, mostram-me mãos. mostram-me a pouca dignidade de quem tudo perdeu.

Eh pá!

são cada vez mais os mais novos. cada vez mais vês ali alguém que poderá ter a tua idade ou talvez menos.

passado o choque, tu, que até foste criada sob o catolicismo, pensas no lado evangelizador. e tirar estas pessoas da rua? e dar-lhes condições para que possam ir procurar emprego? e encaminhá-los para que possam fazer um tratamento e deixar o vício? quem nunca pensou isso? ensiná-los a pescar?

se eles 99% das vezes não querem. acho que nem têm como querer, tal é a espiral que se vêem envolvidos.

e porque é que eu tenho de ajudar quem não “quer” fazer pela vida? quem não “quer” trabalhar? quem não “quer” a responsabilidade de ter um emprego, uma casa, uma família e contas para pagar?

porque, tal como diz a minha mãe, “podias ser tu. podias ser tu nessa espiral”.

debato-me com o compromisso. debato-me com a proximidade. debato-me com este lado esquerdo que se tornou tão mole, com esta pele que se tornou tão fina ou com este órgão que se tornou tão musculado que quase que bate fora do peito.

dar o peixe ou ensinar a pescar?

dar, pois não tenho ainda em mim o lado pedagogo bem desenvolvido.

|dar o peixe ou ensinar a pescar|